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A psicóloga e educadora americana Susan Linn tem dedicado sua carreira ao estudo do impacto das mídias e do marketing na formação das crianças. Mais do que isso: tornou-se uma espécie de ativista pelo bem-estar infantil e ficou conhecida por lançar uma campanha contra a propaganda enganosa voltada para esse público.
Três dos seus livros estão disponíveis no Brasil: "Crianças do Consumo: A Infância Roubada", "Em Defesa do Faz de Conta: Preserve a Brincadeira em um Mundo Dominado pela Tecnologia" e "Quem Educa Nossas Crianças?: Como evitar que as Novas Gerações Sejam Vítimas do Consumismo e Exploradas pelo Marketing das Big Techs".
Neste último, lançado em maio pelo selo Vestígio, Susan demonstra como as empresas de tecnologia faturam alto explorando a fragilidade das crianças, ao mesmo tempo em que aponta caminhos para uma mudança de rumo. Leia um trecho a seguir.
Em meus momentos mais cínicos, me pego pensando que os setores de tecnologia e mídia agem de caso pensado para causar estragos não apenas nas famílias, mas em todos os nossos laços mais estreitos com outras pessoas.
Afinal, quanto mais deixamos de priorizar nossos relacionamentos humanos íntimos, mais dependentes nos tornamos de nossos dispositivos para encontrar conforto e companhia. E, quanto mais tempo gastamos em nossos dispositivos, mais dinheiro geramos para as empresas de tecnologia e seus clientes corporativos.
Em meus momentos menos cínicos, penso que a melhor palavra para descrever os criadores de nossos dispositivos – pelo menos em relação a grande parte do conteúdo que eles criam – é amoral, não imoral. Prejudicar propositalmente as pessoas não é o objetivo de seus planos de negócios, e sim vencer a concorrência na disputa por nossa atenção, gerando o maior lucro possível.
Quanto aos danos potenciais, bem, em tese as pessoas podem escolher quando, como e o quanto usar seus dispositivos.
Aqueles de nós que se preocupam com os efeitos que o excesso de tempo dedicado à tecnologia causa nas crianças costumam apontar para as histórias presentes na mídia sobre executivos de tecnologia que matriculam os filhos em escolas livres de telas e/ou estabelecem limites de uso de tela em sua própria casa.
Mais do que ninguém, as pessoas que criam essas tecnologias devem estar familiarizadas com os danos potenciais às crianças.
Foi o falecido Steve Jobs que, quando indagado se seus filhos adoravam o iPad, respondeu: “Eles nunca usaram”. Em seguida, explicou: “Em casa, nós limitamos o uso de tecnologia pelos nossos filhos”.
Mas vejo aí outra mensagem, mais sutil. Se, de acordo com essa hipótese, as pessoas que criam as tecnologias protegem seus filhos contra o uso – ou abuso – delas, então outros pais e mães não deveriam ou não poderiam estabelecer limites também?
A falha nesse argumento tem a ver com duas mensagens implícitas na admissão de Steve Jobs de que mantinha seus filhos longe do iPad.
A primeira é: “Se eu posso proteger meus filhos, todos os outros também podem”. A outra é: “O ônus de proteger as crianças deve recair exclusivamente sobre os pais e as mães, não sobre a minha empresa”.
Na verdade, colocar a culpa apenas em pais e mães e imputar a eles esse ônus é absurdamente simplista. Acerca do autocontrole e do poder de sedução de nossos dispositivos digitais, Tristan Harris, cofundador da ONG Center for Humane Technology [Centro para Tecnologia Humanizada], afirma: “Podem até dizer que é minha responsabilidade [...], mas isso é não reconhecer que do outro lado da tela há milhares de pessoas cujo trabalho é analisar e destruir qualquer responsabilidade que eu possa ter”.
E não se esqueça dos bilhões de dólares que são gerados graças ao sucesso delas. O Facebook sozinho rendeu u# 86 bilhões em 2020, mais de dez vezes sua receita em 2013, a maior parte proveniente de publicidade.
[O cientista da computação americano] Jaron Lanier, muitas vezes chamado de “pai da realidade virtual”, foi ainda mais direto:
É importante lembrar que esses dispositivos são concebidos para ser viciantes. É uma verdade que os próprios executivos dessas empresas reconhecem. Em vez de pensar que a culpa é das crianças ou de pais e mães, temos que reconhecer que envolvem sistemas cruéis que se aproveitam das fragilidades humanas universais
Pagamos para que os celulares se infiltrem em nossa vida familiar
Mais de 15 anos atrás, em uma conferência sobre marketing, participei de um painel sobre telefones celulares no qual o palestrante destacou o seguinte ponto: o mercado de celulares para adultos estava ficando saturado e, como todos os mercados, precisava se expandir.
O mercado de celulares para adolescentes também estava ficando saturado e, portanto, o alvo seguinte seriam os pré-adolescentes e, depois, até as crianças mais novas.
O palestrante sugeriu vender a pais e mães a ideia de que os celulares eram dispositivos de segurança e, a partir disso, investir em publicidade que os apresentasse para as crianças como itens “divertidos” ou “legais”. Continua a ser uma estratégia tremendamente eficaz.
Nos Estados Unidos, 53% das crianças de 11 anos têm um smartphone. O mesmo acontece com 32% das crianças de 10 anos e 19% das crianças de 8 anos.1 Em 2005, fiquei especialmente preocupada com o impacto desses dispositivos portáteis nas brincadeiras, na criatividade e nas oportunidades das crianças de se envolver com o mundo ao seu redor.
Mais de uma década e meia depois, agora entendo isso também como um ataque à importante experiência de formação de vínculos que ocorre durante as conversas entre pais, mães e filhos.
Quando minha filha estava no ensino fundamental, eu e as mães dos amiguinhos dela costumávamos trocar ideias sobre a estratégia de esperar a ocasião de um passeio ou viagem de carro para ter conversas potencialmente difíceis com nossos filhos.
A intimidade de estarmos juntos em um espaço pequeno, mas não cara a cara – a mãe no banco da frente, o filho pequeno na cadeirinha no banco de trás –, parecia se prestar bem às conversas.
Por volta de 2005, quando o conteúdo de vídeo se tornou disponível com mais facilidade em telefones celulares, as empresas de mídia começaram a ver os passeios e as viagens de carro como oportunidades lucrativas.
Como escrevi no livro “Em Defesa do Faz de Conta”, quando a [gigante das telecomunicações] Verizon abocanhou um contrato com a Sesame Workshop para disponibilizar o conteúdo do programa Vila Sésamo em seu serviço telefônico, J. Paul Marcum, então chefe da divisão interativa da Sesame Workshop, negou que a empresa defendesse a comercialização de telefones celulares para crianças pequenas.
E acrescentou: “Não se pode ignorar o fator de conveniência quando as pessoas estão em movimento. O pai ou a mãe pode passar um celular para as crianças na parte de trás do carro. E é um dispositivo que as famílias vão levar consigo para todo lado”.
Mais ou menos na mesma época, um porta-voz da Verizon afirmou: “Os pais e as mães que passam algum tempo com uma criança estão achando [os downloads de vídeo em telefones celulares] uma ótima diversão”.
Ken Heyer, pesquisador de mercado da ABI Technologies, definiu assim a questão no jornal The New York Times: “É realmente conveniente, porque há um bocado de brincadeiras que as crianças podem jogar”.
É o ponto em que estamos hoje. Seja com relutância ou de braços abertos, convidamos para dentro de nossa casa um punhado de entidades poderosas e sedutoras engendradas para gerar lucros ao monopolizar nossa atenção. E que não dão a mínima para nossas relações.
Nossos smartphones não são apenas máquinas. São canais por meio dos quais as empresas de tecnologia vigiam e moldam nossos comportamentos – uma espécie de espiões corporativos sedutores, divertidos, charmosos, infinitamente cativantes e de aparência benfazeja, que na verdade são especialistas em se intrometer na nossa vida e nos manipular para alcançar seus próprios objetivos.
Nós os levamos conosco para jantar, nas viagens de férias, ao parque com nossos filhos e para a cama. Pedimos seus conselhos, contamos com eles para obter informações e contamos com eles para acalmar nossos filhos ou mantê-los entretidos.
Embora pareçam estar a nosso serviço, a verdadeira missão dos smartphones é servir a nós e nossos filhos em uma bandeja aos anunciantes, com o intuito de gerar lucros corporativos. Em outras palavras, as corporações descobriram a maneira de se infiltrar na vida familiar e monetizá-la, e nós as pagamos para fazer isso.
Conteúdo editado por: Omar Godoy